Sobre intenções e resultados


Pode ser clichê, ou até ingenuidade, mas, de boas intenções o congresso está cheio. Tudo bem, mesmo que não esteja, para o presente propósito suporemos que sim. Seguiremos o conselho de Du Pont:

(…) it is necessary to be gracious as to intentions; one should believe them good, and apparently they are; but we do not have to be gracious at all to inconsistent logic or to absurd reasoning. Bad logicians have committed more involuntary crimes than bad men have done intentionally.

Apesar da abundante generosidade das intenções do congresso nacional e do governo federal, que têm a pretensão de ser verdadeiros pais e mães dos demais cidadãos, nem sempre suas ações geram bons frutos. A sociedade é complexa e, em geral, os formuladores de política desconsideram o contexto em que se encontram, as reações dos indivíduos sujeitos à política, conseqüências de longo prazo ou em cirscunstâncias diferentes da que inicialmente imaginaram, entre outras variáveis . Por conseguinte, não somente obtêm-se conseqüências indesejáveis, como freqüentemente observam-se efeitos contrários ao que se pretendia. Isso não seria problema se as pessoas julgassem leis e políticas segundo seus resultados. Entretanto, geralmente, o que se vê são julgamentos e defesas intransigentes, fundamentadas apenas, ou na maior parte, nas intenções.

O que você acharia de uma lei que obrigasse o responsável por um acidente de trânsito a arcar com as despesas médicas dos feridos? Muito provavelmente, várias pessoas diriam que se trata de uma lei mais do que justa. Moralmente, está correta, afinal, quem fez o dano que arque com as conseqüências, certo? Os incentivos também seriam positivos, pois, ciente de que terá de arcar com possíveis despesas, o motorista seria mais prudente. Mas o diabo mora nos detalhes. O que poderia pensar um motorista, após um acidente, caso vislumbrasse gastos médicos superiores à indenização por morte? Poderia raciocinar de forma a acontecer isto aqui. Sim, o motorista quis se certificar de que a criança estava morta, pois teria de pagar menos. Neste contexto específico, uma lei moralmente correta, com a melhor das intenções, gerou resultado oposto do que se esperava. Este tipo de reação já seria esperado se utilizássemos a teoria econômica do crime na análise da lei. Se algum dia você já se perguntou por que não colocamos leis super-rígidas para quaisquer tipos de infração, é justamente por isso. A intenção pode ser boa, todavia, se a pena por um roubo e um latrocínio forem iguais, o assaltante não irá mais pensar duas vezes antes de matar.

Tomemos agora outro exemplo – a reforma agrária no Brasil. Bernardo Mueller e demais autores trazem evidências de que, devido a inconsistências administrativas e jurídicas com relação ao uso da terra, que resultam em direitos de propriedade inseguros, as políticas de reforma agrária tendem a levar a um aumento do uso da violência e do desmatamento maiores do que ocorreriam caso não fossem aplicadas. Sendo um pouco mais específico, os conflitos se originam de uma inconsistência legal que, de um lado (código civil), garante ao proprietário de terra o seu usufruto, mas que, de outro (constituição), garante aos potenciais invasores o direito à reforma agrária (capítulo III). Devido à insegurança jurídica, o desmatamento torna-se um instrumento para se aumentarem as garantias de posse da terra. Para o dono, o desmatamento é utilizado para colocar a terra em uso produtivo, e minimizar o risco de expropriação (inciso II, art. 185, CF). Já para o invasor, desmatar a terra e fazer benfeitorias aumentam as chances de receber alguma indenização caso seja despejado. Outra questão é o fato de que, em média, os conflitos rurais têm maior predominância nos locais onde, ironicamente, a atuação do INCRA é mais forte – os detalhes podem ser vistos no artigo. Além dos óbvios danos físicos e materiais desses problemas – o que em si já é preocupante – o advento de conflitos violentos também teria o potencial de reduzir o número de arrendamentos. Decerto não eram essas as intenções das políticas de reforma agrária. Porém, estes são os resultados.

Por fim, vejamos mais um exemplo, o mais clichê de todos – a criminalização das drogas. Por ser algo já bastante conhecido, não me alongarei. As intenções por trás da criminalização são as melhores: as drogas podem viciar, arruinar vidas de famílias, causar danos à saúde, entre outros malefícios – assim, nada mais moral e justo do que desejar o fim de seu uso. Mas os resultados não intencionais desta política também ferem o bom senso do cidadão: criação e fortalecimento de crime organizado, desvio de recursos públicos para o combate às drogas (ao invés de financiar atividades mais essenciais), corrupção governamental, incentivo à invenção de drogas mais potentes e mais baratas. Da mesma forma que o pequeno chinês, que foi vítima de incentivos perversos, esta é uma política que cria uma série de outras vítimas, como aqueles que não têm policiamento suficiente a suas portas pois agora há mais policiais corrompidos ou ocupados na luta contra as drogas.

A lista de exemplos poderia ser estendida. Vemos atualmente muitas defesas de políticas públicas e leis que são fundamentadas nas intenções e pouco se discutem os resultados. Financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais com a intenção de reduzir a corrupção; fixação de um salário mínimo nacional com a intenção de acabar com a miséria; aumento do IPI para carros importados com a alegada intenção de proteger empregos nacionais… algo que pode nos ajudar a sair do campo das vontades e dos desejos, para entrar no campo dos fatos e resultados são uma boa teoria, bons dados e estatística. Assim, em um debate, suponhamos todos que temos as melhores intenções. Não obstante, esperam-se argumentações teoricamente fundamentadas, evidências bem tratadas, e não apenas wishful thinking.

10 pensamentos sobre “Sobre intenções e resultados

  1. Muito bom! Essa questão do aumento do IPI dos carros eu diria que até vai além da esfera das boas intenções. Sob o discurso de proteger a produção nacional de automóveis e, conseqüentemente, os empregos que são criados, essa medida tenta mascarar um lobby político muito forte das montadoras nacionais. O primeiro problema é obstruir a concorrência (acarretando os malefícios que conhecemos), o segundo reside no fato de que não há, por parte do Governo Federal, um posicionamento no sentido de incentivar as nossas fábricas a produzirem carros de melhor qualidade, em convergência com os padrões internacionais de segurança, por exemplo. Todavia, o cidadão padrão no Brasil (o consumidor médio de informações), ao observar medidas como essa (de “proteção” nacional), tende a garantir seu voto a quem estiver no poder, no caso, ao PT.
    Um abraço!

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  2. Hahaha essa do IPI é mesmo dura de engolir, difícil imaginar que haja alguma boa intenção de fato, por isso que coloquei um “alegada” tachado. Agora, quanto ao voto do eleitor médio, há algum tempo também achava que este gostava de medidas protecionistas, mas uma pesquisa não tão distante (2009) mostra que o que os eleitores mais consideraram bom no governo Lula foram o bolsa família, a redução do IPI e a manutenção de preços baixos (isto é inflação razoavelmente controlada). Abs!

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  3. A única discussão sem dados, só em buteco… e olhe lá!

    Bom post.

    Ps.: Tem que fazer um “Perfil do Blogger” nesse negócio hein (e um twitter também, hehehe)!

    Abraços

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